Injuriado, retorno a esta tribuna sacando do coldre um spoiler, aquele artificio muito usado por xibungos e cinéfilos (desculpe-me a redundância) para antecipar o desfecho da trama. Portanto, aviso logo à praça: Se seu negócio é ludopédio, favor voltar outro dia. O longo texto que segue abaixo não tratará de futebol.
O seguinte é este. Ou melhor, foi este.
O ponteiro do relógio marcava exatamente 17h49 quando a porra do telefone do trabalho toca insistentemente. Absorto, ignoro. Porém, a estagiária, burra, gostosa e gentil, me chama.
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Ligação para o senhor
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Diga que não estou, minha filha.
E não estava mesmo. Minha cabeça, tronco e membros continuavam voltados para a peleja entre Vitória x Avaí, que começaria às 21h no tenebroso e friorento Estádio Ressacada.
Poucos instantes, a disgramada retorna.
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Eu falei que o senhor mandou avisar que não estava (viva a inteligência!), mas a moça informou que era coisa urgente.
Diante disso, aquiesço. E ouço do outro lado da linha a voz aflita de DONA SÔNIA, a moça que trabalha lá em casa.
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Sêo Françuel, o menino tá com 39,7 de febre. Tem que levar para o hospital agora.
Havia tanto terror na sua frase, que parecia que era a referida que estava prestes a bater as botas. Por isso, ato contínuo, abandono a labuta na gloriosa, egrégia e augusta Assembleia Legislativa e desço a ribanceira já pensando em uma fórmula para adiantar o serviço. Mesmo sabendo que podia dar AZAR, avento até a hipótese de pegar carona com a MINHA VIZINHA.
Antes das 19h, chego na emergência lotada do Hospital da Bahia e escuto uma estranha sinfonia de tosses e espirros.
Putaquepariu o porco espinho!
E o ponteiro do relógio dispara. 19h30, 20h, 20h30 – e nada. Exatamente às 20h48 o médico, numa leseira do cão, começa a atender meu rebento. Porém, em vez de cuidar logo da gripe, ele começa a querer saber a história toda do guri. Depois de muita prosopopéia inútil, receita nebulização e hemograma.
Pego o sacaninha pelo braço e arrasto-o pelo corredor daquele asséptico nosocômio. São exatamente 21h02 e nenhuma bandeira do Vitória naquele recinto. É muito descaso. Por isso que a saúde do Brasil tá do jeito que tá.
Mas, derivo.
Em seguida, uma enfermeira de peitos pequenos (não se fazem mais enfermeiras como antigamente) pede para eu ficar tranquilo. “Tenha calma. Vai ficar tudo bem. Não é nada grave”. Como assim não é nada grave? Já são 21h10 e não tenho nenhuma notícia sobre o jogo lá em Santa Catarina.
Pois muito bem.
Dizem que quando o satanás não aparece manda seu secretário. Olho para o lado e vejo um perneta filho da puta (por que todos os pernetas são filhos da puta?) com um fone no ouvido, bem feliz. Faço um sinal e peço, humildemente, para ele sintonizar numa rádia que esteja transmitindo a partida. “Já estou ouvindo o jogo. Tá 1 x 0 para o Avaí”, diz o sacripanta, sem disfarçar a alegria.
Então, decido acompanhar a peleja pelo semblante do desinfeliz. Poucos minutos depois e ele faz uma cara de quem está atrasado para ir no sanitário.
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O que foi? , pergunto aflito.
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O Vitória meteu uma bola na trave.
Mais um tempinho e ele abre um sorriso escroto. Avaí 2 x 0. Desisto de ficar olhando para a cara do perneta filho da puta, mas não abdico de tentar ver o resto do jogo. Procuro novamente a enfermeira de peitos pequenos. Ela me diz que o resultado do hemograma não vai demorar. “Em menos de duas horas está pronto”.
Duas horas? Caralho!
Então, apelo. “Meu filho, vou aqui fora tomar um ar. E volto já” Como ele já me conhece há 18 anos, largou. “Vai procurar um bar pra ver o Vitória, né, pai?”. Não tenho como negar. “Mas, é rápido, filho. Em meia hora estou de volta. Só vou ver a segunda etapa”. E ele. “Mudaram a regra do jogo, foi? Cada tempo agora tem apenas 30 minutos?”.
O sacana com gripe e febre e ainda fica fazendo piada…
Pergunto ao porteiro do Hospital onde posso ver o jogo ali perto.
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Vá no Botequim. É só dobrar a segunda a esquerda e, depois do quebra-mola, pegar a direita.
Chego na disgrama do recinto e vejo apenas rostos lânguidos. O telão tá passando um show de Djavan. Bem feito. Quem manda ir num lugar que se chama botequim, com ó.
Brasileiro, não desisto nunca. E mais rápido do que um Ben Johnson dopado, corro para a Rua do Canal. Antes de chegar na esquina, ouço o barulho de fogo e penso. “Agora, vai. Gol do Vitória”. Olho para o lado e lá está um corpo estendido no chão. Um cidadão tentou reagir a um assalto e foi alvejado na mão e na clavícula.
Fujo dos ladrões e finalmente chego numa budega para ver o time. Antes que pudesse passar as primeiras orientações, Victor Ramos toma um nó de menino de playground e ainda faz penalti bisonho. 3 x 0. Pra acabar de fuder a porra toda, o juiz, em vez de acabar logo o jogo, deixa a partida ir até os 45 minutos. O Avaí mete mais um.
Volto para o Hospital depois da meia-noite e ainda não tem o resultado do hemograma. Toda a equipe médica está mobilizada atendendo o rapaz (ele também era rubro-negro) que levou os tiros.
Olho para a folhinha que marca 31 de julho. Poizé. Agosto ainda nem começou.
Valei-me São George Romero!